Espírito ou Matéria: qual a base da nossa civilização?
Por Ricardo Pontes Nunes
O crescimento do neopentecostalismo no Brasil, assim como em outras regiões do globo, sobretudo nos chamados países periféricos, tem dado ensejo a uma nova crítica ao capitalismo. Nela, chega-se a apontar esse sistema como estando na raiz mesma do fenômeno neopentecostal, o que me chamou a atenção para o problema de se o impulso que segundo esses críticos alimenta essas denominações não teria sido gerado, mas tão somente despertado, pelo que eles chamam de “nova ética capitalista”, uma vez que sabemos que a devoção religiosa é algo tão antigo quanto nossa própria organização social; e que, da cobiça, Judas Iscariotes dera testemunho desde que vendeu seu mestre por trinta denários com a efígie de César.
A crítica do poder associado à religião vem desde muito antes de esse poder se concentrar nas mãos da burguesia capitalista. Ficou famosa a paráfrase de Denis Diderot do testamento de um tal Jean Meslier, no qual este confessava que só descansaria em paz “quando estrangulasse o último monarca com as tripas do último sacerdote”. Políbio, por volta de 150 a.C., já advinhara que uma das causas do sucesso dos seus conquistadores era a deisidaimonia do povo romano, ou seja, suas crenças e superstições religiosas é que proporcionavam àquele Estado sua eficácia militar e administrativa (apud VOEGELIN, 2012, p. 173). Seguindo a linha de raciocínio de Engels em As Origens da Família, da Propriedade Privada e do Estado, o mandamento mosaico do “não roubarás”, não seria senão um documento probatório de que muito antes do capitalismo florescer, a religião já reivindicava o caráter sagrado do direito de propriedade.
Em certa medida, a etnografia permitiu que recuássemos ainda mais no tempo. Por volta de 1918, ao fim de sua longa pesquisa nas Ilhas Trobriand, Bronislaw Malinowski concluiria ser o materialismo histórico inaplicável às sociedades tradicionais, e, por projeção, às primitivas[1]:
Fiz uma digressão detalhada para criticar as concepções sobre a natureza econômica do homem primitivo, tais como sobrevivem em nossos hábitos mentais e em alguns livros ─ o conceito de um ser racional que não quer senão satisfazer suas necessidades mais simples [...] No fundo da assim chamada concepção materialista da história [...] em tudo que o homem imagina e procura e tem sempre em mente uma vantagem material puramente utilitária. Espero que agora, seja qual for o significado que o kula possa ter para a etnologia, para a ciência geral da cultura, sirva como instrumento para banir concepções tão cruas (MALINOWSKI, 1984 [1922], p. 369).
Isso, no entanto, não o impediria de declarar mais tarde que “as primeiras formas de usar a riqueza como poder estão relacionadas com a magia e com a religião” (1947, p. 247). Quanto à constituição hierárquica de que é feita a própria ordem social, podemos citar a opinião de Radcliffe-Brown. Em seus debates com o anglo-polonês, argumentou contra o caráter individual que este atribuía às circunstâncias em que os nativos recorriam à magia:
A magia, e de forma mais geral o ritual, são produtos de exigências impostas pelo sistema social. A percepção individual do que é ou não perigoso é guiada, em todos os seus aspectos, pela comunidade (RADCLIFFE-BROWN, 1973).
Durkheim, manteve a questão no mesmo terreno:
Ao mostrar na religião uma coisa essencialmente social, de maneira nenhuma queremos dizer que ela se limita a traduzir, numa outra linguagem, as formas materiais da sociedade e suas necessidades vitais imediatas (2003 [1912], p. 468);
Ao passo que Max Weber sequer chega a entrar nessa seara:
Não parece demonstrável que determinadas condições econômicas gerais sejam o pressuposto do desenvolvimento da crença nos espíritos... (2015 [1920]., p. 280);
Marshall Sahlins, parece que, sem se dar conta de que por si mesmos “cultura” ou “símbolo” são destituídos de significados, postulou uma espécie de devir que engendraria uma ordem simbólica:
Nas culturas tribais, economia, política, ritual e ideologia não aparecem como ‘sistemas distintos’; tampouco relações podem ser facilmente designadas a uma ou outras dessas funções [...] a cultura, a ordem simbólica, domina em todos os lugares. [...] A singularidade da sociedade ocidental não está no fato de o sistema econômico fugir à ordem simbólica, mas nas consequências estruturais por essa opção. [...] o fundamental repousa na orientação característica de seus sistemas simbólicos (apud KUPER, 2002, pp .221-22).
Na contramão dessas conclusões está, evidentemente, o esquema do materialismo histórico, assim como um de seus desdobramentos mais célebres: os conceitos de dominação e habitus da sociologia de Pierre Bourdieu, que deram vazão a novos conceitos críticos sobre as mais recentes estratégias e valores da sociedade capitalista, como os que enxergam na ética neopentecostal, por exemplo. A ambos, obviamente, não interessava o regressus ad infinitum antropológico, mas um momento e um sistema específicos na história.
Contudo, o que quero chamar a atenção é justamente para o fato de que, apesar de tudo o que possa pesar em contrário, tanto Marx como Bourdieu no fundo não deixam de corroborar, ainda que en passant, aquilo a que Edward Gibbon chamou de o “inato pendor do coração humano para a devoção” (GIBBON, 2003 [1776], p. 201). Tanto o paradigma da economia política marxiana como o psicossociológico bourdieuiano, embora jamais se detenham numa abordagem etiológica dos fenômenos religiosos, instituem sem querer seu caráter primordial na medida em que os inscrevem dentro de uma posição privilegiada, dada a intensidade e duração da força e eficácia decisivas que atribuem a tais fenômenos ao longo do tempo.
É muito mais provável, portanto, que estes é que seriam a “variável independente” da história humana, a qual determinaria todo o resto, não o materialismo em que eles acreditaram. Se não fosse assim, o primado do domínio político econômico haveria de possuir alguma uma outra matriz congênere e mais visceral que as crenças espirituais ─ refratária a qualquer possibilidade de identificação até agora ─ de onde derivar as premissas cosmológicas que legitimassem sua autoridade moral; e o que implicaria que, assim como qualquer estágio da magia seria de fato “uma forma primitiva de ciência, porque baseada em uma falsa ideia sobre a regularidade dos processos de causa e efeito” (FRAZER, 1982 [1890], p. 137), a religiosidade, por sua vez, não passaria de uma insidiosa e artificial persuasão criada ex nihilo, uma fraude plasmada pelos agentes da dominação em nossa herança cultural desde os primeiros bandos de paleontropídeos.
Logo, podemos argumentar que uma teoria política capaz de fazer com que compreendêssemos melhor seus processo de formação para além de formas específicas e localizadas, como pretende o materialismo histórico, não poderia devotar apenas repúdio às ideias mágico-religiosas. Satisfeitos em tentar descrever apenas como os dispositivos da máquina se comportam num dado momento, esquecem-se do principal: o que de fato põe em marcha toda a organicidade desse grande mecanismo civilizatório como um todo.
Creio que esse sentimento foi o que levou um historiador das religiões menos ortodoxo como Mircea Eliade, aferrado ao seu sentido mais estrito, teológico, a concluir que através da investigação das instituições de um povo desaparecido é que se pode chegar a conhecer o tipo de religião que praticavam (ELIADE, 2011). Enfim, investigar nossa percepção cognitiva diante do cosmos talvez seja bem mais profícuo, já que dessa observação é que parecem ter surgido os primeiros ingredientes da organização social, como os clãs e o totemismo; aliado a isto, as formas com que reagimos às pressões técnico-econômicas e técnico-ecológicas que parecem condicionar nossa estrutura psíquica e sociocultural.
Nota
[1] Observando as trocas intertribais do Kula, Malinowski descartou o caráter meramente utilitário dos interesses materiais dos nativos, já que tais cerimônias seriam regidas sobretudo por sentimentos de reciprocidade.
Bibliografia
DURKHEIM, Émile. As formas elementares da vida religiosa. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
ELIADE, Mircea. História das crenças e das ideias religiosas. Vol. II. Rio de Janeiro: Zahar, 2011.
FRAZER, James G. O ramo de ouro. São Paulo: Guanabara Koogan, 1982.
GIBBON, Edward. Declínio e queda do Império Romano. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
KUPER, Adam. Cultura: a visão dos antropólogos. Bauru: Edusc, 2002.
MALINOWSKI, B. Freedom and civilization. Londres: Allen & Unwin, 1947.
______ . Os argonautas do pacífico ocidental. São Paulo: Abril Cultural, 1984.
RADCLIFFE-BROWN, Alfred R. Estrutura e função na sociedade primitiva. Petrópolis: Vozes, 1973.
VOEGELIN, Eric. Helenismo, Roma e cristianismo primitivo. História das ideias políticas, vol. I. São Paulo: É Realizações, 2012.
WEBER, Max. Sociologia da religião. In: Economia e sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva. Vol. 1. Brasília: UnB, 2015.