Tradução e Notas: Paulo Césas de Souza
Editora: Companhia de Bolso
184 pág.
O Nascimento da Tragédia
Nietzsche e a Tragédia Grega: nascimento, morte e possível ressurreição
Por Flávio Roberto Nunes
“Tudo quanto nasce precisa estar pronto para um doloroso ocaso”
1. Nascedouro
Em seu livro de estreia, O Nascimento da Tragédia, 1872, Nietzsche nos diz que Dionísio é o deus da arte não figurada da música, enquanto Apolo, deus dos poderes configuradores, rege não só as artes plásticas, mas também uma parte da poesia. Tudo quanto pode ser chamado de produção artística está simbolicamente sob os influxos desses dois deuses gregos.
Nessa dialética, Apolo, além de deus dos poderes configuradores, é ainda o que reina na aparência do mundo dos sonhos. E quão superior, tanto para o artista plástico como para o poeta, é a verdade desse mundo onírico, comparada com a do mundo que o homem de não propensão filosófica chama de real! Em seu De Rerum Natura mesmo, Lucrécio nos diz que os pintores, escultores e poetas gregos vislumbraram primeiro em sonhos as imagens dos deuses olímpicos e só depois passaram a representá-las em seus versos, vasos, esculturas e baixos-relevos. Em face do sonho, o artista observa com vagar tudo quanto é imagem que se lhe apresenta em sons e cores vivas. Observa sabendo que tudo não passa de um sonho que, como todos os outros, em breve será desvanecido. A partir dessa observação, educa-se não só para as artes como também para a vida, onde busca nunca ultrapassar aquela linha delicada, pois é também Apolo o deus da medida, do nada em demasia, do autocontrole e do conhece-te a ti mesmo. E como a característica da aptidão filosófica é o dom de um homem, em certos momentos, considerar todos os outros homens e coisas como meras sombras, imagens irreais prestes a dissipar-se feito nuvens ao vento, assim também se comporta o artista-filósofo em face da realidade do mundo onírico. Sabe que há outras além daquela e tranquilo permanece no contemplar, prenhe daquela limitação mensurada, daquela liberdade em face dos instintos e das emoções mais selvagens. Se é sapiente e tranquilo o olho do deus plasmador, o olho de seu discípulo, tanto no sonho como na vida, também deve ser solar, uma vez que a divindade da luz atua justamente traçando linhas fronteiriças entre os indivíduos. Para ele e seus asseclas, tais limites são as leis mais sagradas deste mundo.
Já nos transportes dionisíacos essa individualidade desaparece. Sob os poderes do deus do vinho, o homem agora quer fundir-se com seus semelhantes e com a natureza. Embriagados e sob a delirante torrente da música é que podemos ver, nos carnavais da vida, as manifestações análogas ao espírito de Dionísio. Vemos a multidão crescente, cantando e dançando de lugar em lugar, como se passasse diante de nossos olhos o fundo comum e invisível de todos nós. Sob o efeito dessa magia, os indivíduos se unem, o homem reconcilia-se com seu próximo e também com a natureza, que, por sua vez, reconcilia-se com seu filho pródigo. Agora não há mais lugar para distanciamentos, delimitações entre as pessoas. A camisa de força social é rompida, evapora-se o mal-estar na civilização. Graças ao evangelho da harmonia universal, cada um se sente não só unificado, conciliado, fundido com seu próximo, mas um só, como se retornado ao magma do misterioso Uno-primordial. Remontando aos coros báquicos dos gregos com sua pré-história na Ásia Menor até a Babilônia das sáceas orgiásticas em que um escravo era coroado rei e sacrificado no final da celebração, o que encontramos, em todas essas manifestações, é, no fundo, o mesmo soluçar dos indivíduos por diluição e mistura.
O sonho apolíneo e a embriaguez dionisíaca são fenômenos que parecem irromper do que está para além da compreensão humana. Por obra de Apolo, esse insondável assim como que entra nas formas individuais e separadas entre si, objetiva-se na visível multiplicidade disposta no tempo e no espaço. Seja na realidade, no sonho ou na obra de arte, aparece independente de quaisquer desejos humanos. Se o sonhador for um artista, o impulso continua e, desperto, ele agora põe-se a criar. É Apolo, o deus dos oráculos, das sibilas e oniromantes, é ele quem simboliza esse princípio moldador que, sobre os olhos dos mortais, nos faz vermos separado o que no fundo é uma coisa só.
Durante o sonho de um artista grego, a julgar pelos muitos relatos da tradição, seus olhos permaneciam dotados de uma poderosa capacidade plástica, unida à sua sincera e luminosa paixão pela cor. Seus sonhos possuíam uma causalidade lógica, linhas e contornos realçados, cores e grupos precisos. Assim eram os sonhos de Homero, bardo maior da cultura apolínea e quem, sob os poderes do deus resplandecente, transmutou o mundo dos Titãs na luminosa sociedade dos olímpicos. Mas, por que tiveram os gregos necessidade desses deuses? Qual foi a precisão de onde proveio tão luminosa sociedade de seres supra-humanos? Neles não há elevação moral, santidade, misericordiosos olhares de amor, ali não há nada que nos lembre ascese. E, todavia, tudo o que fazem é divinizado, não importando se para o bem ou para o mal. Por que os deuses gregos foram criados com esses caracteres? Em que se fundamenta essa cultura? A resposta é a seguinte: o grego primeiro mirou o fundo da existência, sentiu, neste vale de lágrimas, a náusea do absurdo. É a sabedoria de Sileno. Nós mortais fazemos parte de uma estirpe miserável e efêmera, somos filhos do acaso, do tormento e da dor. Se o melhor para nós seria não haver nascido, o melhor agora seria morrermos logo o quanto antes. Aqui se nos abre a montanha mágica do Olimpo e nos ficam à mostra suas raízes. O grego sentiu os tremores e horrores do existir, o impacto das sombrias asserções de Sileno, o velho e bêbado semideus das florestas. E para não negar esta existência, para não a desprezar e junto com ela seu próprio corpo, criou aquela espécie de deuses ante o comportamento dos quais o seu próprio e sua vida seriam justificados. Frente aos poderes titânicos da natureza, à Moira, ao destino que reina por sobre homens e deuses, frente àquele abutre a roer o fígado do grande amigo dos homens, à maldição sobre a estirpe dos Átridas, frente a tudo isso, por meio do impulso apolíneo da beleza, o grego cria aquela luminosa sociedade que surge como rosas a desabrochar de uma moita de espinhos. Seus deuses legitimam a vida humana de um povo tão ligado ao sensitivo, tão impetuoso no desejo e a justificam pelo fato de eles próprios também a viverem. E qual é o símbolo maior dessa afirmação, desse apego, desse amor desmedido pela vida? Aquiles lamentando por não ser um imortal e a dizer que preferiria continuar vivendo eternamente, nem que fosse como um escravo.
A cultura apolínea das formas caía como um véu sobre aquele mundo disforme e feio da titanomaquia, da primitiva teogonia dos horrores. O impulso da beleza que engendra o sonho do visionário fez Homero configurar, na poesia épica, esse esplêndido nível de coisas. O heleno punha diante de si um espelho em cuja superfície via-se luminoso e transfigurado. Claro, primeiro vencer monstros, titãs, horror e sofrimento para depois, mediante imagens oníricas, mas sem nunca esquecer os aspectos horrendos da existência, sobressair-se vitorioso sobre uma negadora consideração da vida. Mas não só o heleno como artista humano, a Vontade também queria contemplar-se a si mesma transfigurada na criação do artista e, para auto glorificar-se, os sonhos do artista e sua obra de arte precisavam ser dignos de glorificação, pois ambos aspiravam ver-se numa esfera ainda mais superior do que a vista no mundo dos sonhos. Precisavam mirar-se num mundo de deuses sem imperativos ou censuras, num reino superior da arte, e esse mundo só nos poderia ser apresentado na obra de um artista como Homero, o poeta naïf por excelência. É a sabedoria do sofrer, a do pessimismo trágico, não a do pessimismo de bafo pestilento, rancoroso e ressentido dos que odeiam a vida. O homem é um ser contingente? A existência é absurda e as únicas além dessa são as do Hades e a do Tártaro? E daí? Neste melhor dos mundos possíveis, tudo quanto nasce precisa estar pronto para um doloroso ocaso.
O artista ingênuo que chega a esse ponto de vista sobre a existência e decide afirmá-la com todas as forças é impulsionado por uma espécie de fogo sacro. É esse fogo que o incita, que lhe forja a meta alcançável na obra a qual ele foi incitado a produzir. Ele mal tem consciência do alvo em que mira, sonha sabendo que sonha e não quer acordar, pois sente um profundo prazer na consideração, na fruição prazerosa, mesmo com o risco da loucura de depois vir considerar a realidade da vigília como a mera ilusão de um delírio.
Esse fundo comum a todos nós, a coisa em si, a Vontade, objetiva-se em três níveis: no da realidade, no do sonho e no da obra de arte. É inesgotável seu apetite para entrar num desses três níveis formais. O nível mais desejado por ele é o da realidade, enquanto o mais altamente satisfatório para o artista é primeiro o do sonho, seguido pelo da obra de arte, que não é mais que essas imagens oníricas potencializadas. É por isso que sentimos aquele prazer indescritível pela obra de um poeta excelso, desses que se veem cercados de figuras que vivem e atuam diante dele e em cujo ser mais íntimo seu olhar penetra. Para essa estirpe de criadores, o que vislumbra incessantemente um jogo vivo e vive continuamente rodeado por hostes de espíritos, a metáfora não é uma simples figura de retórica, mas uma imagem substitutiva que ele faz pairar à nossa frente em lugar do que por ele foi visualizado.
Um poeta que pode ser posto ao lado de Homero como contraponto à sua objetividade é Arquíloco. Foi ele o primeiro lírico que introduziu a canção popular na Hélade. Essa canção popular, a melodia com a letra, não deixa de ser um daqueles momentos em que os impulsos apolíneo e dionisíaco também apareceram emparelhados. A corrente musical dionisíaca é o substrato e pressuposto dessa canção popular. Sua melodia, que remete ao Uno, é o que há de primeiro e mais universal, podendo receber múltiplas objetivações em múltiplos textos em sua fórmula estrófica, de modo que nessa poesia lírica é a letra que tenta imitar a música, tenta objetivá-la em imagens. Aqui a imagística precisa da música, tenta imitá-la, mas a música não precisa da imagem e nunca que poderá ser explicada em conceitos. Mas esse artista lírico não pode ser chamado de subjetivo, contraposto a Homero, o épico, objetivo por excelência. Todo artista, enquanto subjetivo, só pode ser um mau artista, na medida em que sua contemplação do sonho não é desinteressada, na media em que ele, sabendo que está sonhando, aproveita para satisfazer desejos carnais fora de seu alcance no mundo da vigília. Enquanto seus interesses estiverem relacionados ao mundo dos meros fenômenos, a seu corpo, a seus sentimentos, enquanto o criador não for o puro sujeito do conhecimento e seu olho cósmico, não há verdadeiramente produção artística. O verdadeiro lírico fala no fundo do que não é afetado pela morte. Sua disposição musical é que nos dá aquela ilusão de que ele fala de mesquinhos, baixos sentimentos humanos, e nossos estetas, aludindo ao princípio da autoridade, tendem a reproduzir a errônea asserção de Aristóteles, a de que a música imita a alma humana. A saudade, a dor, a nostalgia em que se afigura a música que vem do imo mais profundo é o artista inconscientemente lamentando seu despedaçamento.
Essa música, essa disposição dionisíaca não se nos torna de todo visível nas imagens do poeta, mas a força dessas imagens podem muito bem nos apontar sua origem e nos dizer que elas mesmas não são mais que o vago reflexo figural e conceitual dos abismos do Ser. O eu do verdadeiro poeta lírico soa portanto a partir daí, e não de paixões individuais que despertam desejos egoístas, vem do gênio universal, do espírito da terra para o poeta e seu sofrimento primigênio ante a visão dos estilhaços. Quando está poetando, Arquíloco já não é ele mesmo, mas um médium através do qual o inominável celebra a sua redenção na aparência através da obra de arte desse outro grande artista naïf. A obra não existe por causa dele, ele não a faz de forma consciente, nem visa qualquer espécie de edificação moral de terceiros ou coisa parecida. Nosso saber artístico é ilusório, e o que há no fundo é um único espectador dessa comédia da arte, que, com ela, com os sonhos dos artistas e com a realidade, prepara para si mesmo um eterno e jubiloso desfrute. Depois, quando miramos a obra pronta, aí somos também partícipes dessa mesma fruição. Aliás, nós mesmos, para o verdadeiro criador deste mundo, não passamos de puras imagens e projeções artísticas, e é aí que está nossa suprema dignidade, a de sermos, com o mundo, obras de arte do grande criador.
Assim como na poesia lírica, temos na tragédia ática agora um outro momento, o mais importante, momento em que os dois impulsos aparecem outra vez irmanados, e tanto neste como naquele caso a música dionisíaca é o estrato superior. Isto porque, em seus primórdios, a tragédia era só o coro ditirâmbico e nada mais. Mas esse coro primigênio não era, como Schlegel asseverava, uma espécie de espectador ideal. Nem representava o povo em face de uma suposta região principesca da cena. As fontes primevas da tragédia eram puramente religiosas, e não havia a ideia de contraposição entre nobreza, príncipe e povo. Nem muito menos era o coro um dos atores, como queria Aristóteles. Um espectador ou um público ideal é aquele que sabe que tem diante de si um espetáculo artístico, e não uma realidade, ao passo que o coro trágico reconhecia no palco existências vivas. O coro das oceânides, por exemplo, não via um ator, mas o próprio Prometeu. Portanto, como considerar o coro um expectador ideal? Schiller, que lutou contra o realismo na arte, nos dá uma pista para visualizarmos a questão em maior profundidade. Dizia ele que o coro primitivo era como que uma muralha viva que a tragédia estendia em volta de si a fim de isolar-se do mundo real e de salvaguardar para si o seu chão ideal e sua liberdade poética. No drama grego, mesmo no mais tardio, um pouco antes de sua morte, tudo é ideal, até a linguagem, que é metrificada. Só depois da morte da tragédia é que a poesia ficou obrigada a uma penosa retratação servil para com a realidade. Mas essa idealidade na tragédia não se trata de um mundo inserido arbitrariamente pela fantasia entre o céu e a terra, mas de um mundo com a mesma credibilidade do Olimpo para o grego crente. No coro primitivo, o sátiro vive numa realidade reconhecida em termos religiosos sob a sanção do mito e do culto. Ele está para o homem civilizado como a música dionisíaca está para a apolínea. Pela música do coro, essa civilidade é suspensa, como a claridade de uma lâmpada o é pela luz do dia. Também na tragédia mais avançada, desde aquele estágio primitivo em que era só coro, o grego civilizado se sentia suspenso ante o coro trágico. O Estado, a sociedade civil, tudo era suspenso. Seu efeito era uma espécie de consolo metafísico: por trás do passar, do devir incessante, da geração e corrupção, das desgraças e da morte, por trás de tudo isso há essa coisa indestrutível, poderosa, da qual fazemos parte. O coro nos eleva e aponta para o que é perene em meio à incessante metamorfose das coisas deste mundo. Esse é o efeito principal da tragédia. Os dois deuses, depois de andarem separados um do outro, as mais das vezes até em conflito aberto, agora mais do que nunca se entrelaçam para remeterem o espectador a esse supremo estado de graça. Ao mirar o fundo da existência, o grego, como todo mundo, correu o risco de cair numa negação budista da vida. Mas foi salvo pela arte, e, através da arte, salvou-se nele a vida.
Aqui já se trata também de uma renúncia ao indivíduo através de seu ingresso em uma natureza estranha e como que enfeitiçada que o tornava apto a também andar cercado por hostes de espíritos. Compartilhava ele agora do estado de espírito do próprio sátiro no coro do ditirambo primitivo, que era um coro de transformados, distinto de qualquer outro, do canto processional das virgens, por exemplo, que mantinham suas identidades civis. Na tragédia, o coro é o substrato da imagística apolínea e é até mais importante que a ação propriamente dita, pois profere sentenças de oráculo, de sabedoria, e o mundo da noite é desvelado, e um novo mundo mais claro e mais comovedor se nos descortina.
Sim, o apolíneo na tragédia é apenas a superfície, o diálogo, a linguagem, a fala dos heróis em sua precisão e clareza. Penetremos através dele ao fundo dionisíaco pela música do coro que evoca Dionísio na figura de um Édipo, essa mais dolorosa figura do palco grego, que, todavia, exerce à sua volta um poder mágico, protegendo e abençoando até mesmo depois de sua morte. Apesar de sua sabedoria, ou por causa dela mesma, Édipo estava destinado ao erro e ao sofrimento ao desatar, laço por laço, o nó processual cujo desenlace o levaria à completa perdição. Mas em Colono já o encontramos transfigurado, um santo, pura resignação sob a visão da vida eterna. Sófocles, como poeta, na medida em que é também um pensador religioso, nos mostra Édipo atingido pelo excesso de desgraças, abandonado como puro sofredor que já não sofre mais. Em seu comportamento perfeitamente passivo, alcançou a suprema atividade, enquanto a busca consciente que o impelia à atividade o levou ao desastre. Em Colono, ele é aquela imagem uníssona com a natureza. Sabe que a sabedoria é, na verdade, um crime contra ela, um pecado que terá de ser expiado. Eis também o que Ésquilo nos deixa pressentir com seu Prometeu em ação, embora indo um pouco mais longe, pois Ésquilo também nos faz pressentir, através da impiedade do herói, a indigência divina, o início de um crepúsculo dos deuses, e vemos então também a Moira tronando sobre os imortais, inamovivelmente firme, deixando à mostra a dependência recíproca entre o Olimpo e o homem cético, simbolizado na figura de Prometeu, artista titânico de áspero orgulho e sua criação a desafiar todo e qualquer infortúnio. Ele encontra em si mesmo a crença atrevida de que também pode criar seres humanos, graças à sua sabedoria superior que ele, como Édipo, que desvenda o enigma da Esfinge, vai ser também obrigado a expiar. Mas no fundo o único herói cênico foi sempre Dionísio. Todas as figuras do palco grego na verdade são tão somente máscaras dele. Os indivíduos enquanto indivíduos são cômicos e não trágicos. Os gregos não podiam suportar indivíduos na cena trágica. O único verdadeiramente real que aparece despedaçado numa multiplicidade de máscaras é o mesmo deus lutador, enredado num indivíduo que erra, anela e sofre, é Dionísio visto em pedaços em imagens similiformes de sonho, com nitidez épica, por influxos de Apolo. Através desses heróis, pressentimos a presença do deus em toda sua plenitude. Embora estraçalhado e devorado pelos Titãs, seu coração é salvo por Palas. O iniciado nos mistérios eleusinos espalha um raio de alegria e esperança neste mundo destroçado em que todos lutam contra todos, pois sabe que Dionísio renascerá a partir daquele coração. Sua esperança é parte dessa introvisão, dessa iluminação mística. Não é a esperança negadora, resignada e otimista de uma outra vida em um outro mundo melhor do que este. Deméter, imersa em tristeza, alegra-se quando fica sabendo que poderá dar à luz de novo Dionísio. Eis a doutrina misteriosófica, o ensinamento que a tragédia quer passar através do drama que remete ao mito. Profunda consideração do mundo, nos fala da unidade por trás do vir a ser que nunca é, nos fala do renascimento de tudo o que morre. Não é à toa que a primavera é a estação em que vemos a passagem do carro de Dionísio, coberto de flores e grinaldas, tendo sob seu jugo o tigre e a pantera, impregnando toda a natureza de alegria. Por isso a tragédia nasceu, e, pela perda de tal ponto de vista por parte do grego decadente, sua morte foi decretada.
2. Morte
A tragédia morreu porque nela também morreu a referência ao mito quando este passou a arrastar-se na estreiteza de uma realidade histórica, de uma concepção pragmática, cientificista, utilitária da existência. É essa uma das razões pelas quais uma religião começa a morrer. É quando seus pressupostos míticos passam a ser sistematizados, transformados em doutrinas sob os olhos severos e racionais da ortodoxia, quando se defende a rigidez na interpretação dos mitos, resistindo à possibilidade natural de que eles continuem a viver e a proliferar. Com Eurípides o espectador foi levado à skene. Agora não era mais um herói mítico, ideal, como os de Ésquilo e Sófocles, mas a máscara fiel da realidade. O homem da vida cotidiana abriu caminho até o palco, e o que se via então não era mais os traços grandiosos e audazes. Agora era a mediocridade burguesa, a vida e a atividade comuns de todos conhecida, os aspectos sobre os quais todo mundo está qualificado a dar opiniões. O heleno renunciava aqui à sua própria crença na imortalidade. Não só à crença num passado, mas também num futuro ideal. Nesse estágio o homem não quer mais responsabilizar-se por nada de grave, nem aspirar a nada de grande, de valorizar nada do passado nem do futuro, mas só do presente. Essa fuga diante do que é sério, esse covarde deixar-se contentar com o gozo confortável, isso é o que parecia desprezível aos gregos da melhor fase.
Com a morte da tragédia, morreu a própria poesia, e o que surgiu foi um vazio enorme de algo que tivesse algum valor. Não havia mais o mito. Dionísio então refugia-se na maré mística de um culto secreto. No lugar de uma poesia instintiva, o pensamento filosófico sobrepõe-se e constrange a arte a agarrar-se ao tronco da dialética. No esquematismo do contraponto entre os dois impulsos, cristalizou-se tão somente o apolíneo. Agora, além da tragédia de Eurípides, desprovida do elemento dionisíaco, aparece Sócrates, o herói dialético do drama platônico, que precisa defender suas posições com razões e contrarrazões.
A influência de Sócrates sobre Eurípides é vista no elemento otimista de suas tragédias, ainda que Aristóteles o considere o mais trágico dos poetas. Mas o que se vê em suas peças é a destruição do elemento dionisíaco até o salto-mortal do espetáculo burguês. Basta imaginar as consequências das máximas socráticas: “virtude é saber”, “só se peca por ignorância”. Agora o herói virtuoso tem que ser dialético, agora tem que haver entre virtude e saber, crença e moral, uma ligação obrigatoriamente visível. Agora a solução transcendental da justiça é rebaixada ao nível da razão e do princípio da “justiça poética”. Agora a virtude será compensada, e o vício, punido. O artista excisa de sua obra o elemento dionisíaco originário e onipotente e constrói sua arte tendo de fundo não mais uma música cósmica, mas uma moral. Uma visão socrática do mundo, e não dionisíaca. A obra não nascia mais do espírito da música. O coro, substrato musical dionisíaco da tragédia primitiva, já não era mais o veículo da porção principal do efeito. Seu domínio é restringido a quase coordenado com os atores, como se alçado da orkhestra, o lugar de dança, centro circular no meio do qual erguia-se o altar do deus, como se alçado daí para o interior da skene, lugar através de cujas portas, quando o drama desenvolveu-se, os atores entravam para atuar aos olhos dos espectadores acomodados no thêatron, o lugar de ver, arquibancadas em forma de ferradura, geralmente escavadas na encosta de uma colina.
Sócrates não compreendia a tragédia e por isso não a estimava. No socratismo estético, tudo deve ser inteligível para ser belo. O prólogo euripidiano já é um sintoma disso. É o método racionalista que já diz de antemão tudo o que vai acontecer, uma renúncia ao efeito da tensão. Não se verifica absolutamente a excitante relação de um sonho vaticinador com uma realidade que se verificará mais tarde, o efeito do nó processual desatando-se aos poucos para a desgraça do herói. Para Sócrates, a faculdade criadora do poeta, na medida em que ela não é discernimento moral e consciente, equipara-se à aptidão do adivinho e do intérprete de sonhos assim como para Eurípides, Ésquilo criava de forma incorreta porque fazia inconsciente. São rasas apreciações do que é o poetar de quem ver como uma espécie de vício a virtude crucial do verdadeiro artista. Na ética socrática, tudo deve ser consciente, feito com racionalidade, com uma razão de ser, do contrário não será belo. Sócrates, desencaminhador do povo, atrofiador dos instintos, questionador das virtudes tradicionais, esse adversário da arte trágica, abstinha-se de frequentar as representações e só se incluía no rol dos espectadores quando uma nova peça de Eurípides era apresentada. Em sua nova e inaudita estimação do saber e da inteligência, uma ética instintiva devia ser condenada. O daimon, a voz da razão que se manifesta em determinados momentos e dissuade o indivíduo a não mais agir por instinto, para sua própria segurança, em Sócrates essa voz é a do instinto, que só uma vez ou outra adverte sua razão. Enquanto em todas as pessoas verdadeiramente produtivas o instinto é justamente a força afirmativa, criadora, e a razão, o daimon, manifesta-se de forma crítica e dissuasória apenas em determinados momentos, em Sócrates é o contrário. Uma verdadeira monstruosidade de uma natureza lógica, não mística. Em Sócrates nunca ardeu o gracioso delírio do entusiasmo artístico. Ele não mirava com agrado os abismos dionisíacos. Via na tragédia algo irracional, com causas sem efeitos e com efeitos que pareciam sem causas, um conjunto variegado e multiforme que teria de repugnar a uma índole ponderada, além de ser uma isca perigosa para almas sensíveis. Para ele, a arte trágica nunca diz a verdade e dirige-se àquele que não tem muita inteligência, não aos filósofos. Como Platão, ele as incluía entre as artes aduladoras, as que não representavam o útil, mas somente o agradável, e por isso exigia de seus discípulos o rigoroso afastamento de tais atrações, tão pouco filosóficas, e o exigiu com tanto êxito que o jovem poeta trágico, Platão, queimou seus poemas a fim de poder tornar-se seu aluno. Sua verve produtiva concentra-se agora na criação dos Diálogos, mistura de todos os estilos e formas precedentes. O diálogo platônico é o protótipo do romance moderno, uma fábula esópica infinitamente intensificada, onde a poesia vive com a prosa dialética em uma relação hierárquica semelhante à que a filosofia ocupava ante a teologia na Idade Média. Foi a nova posição a que Platão, sobre a pressão de Sócrates, arrastou a poesia.
Foi Sócrates, com o chicote de seus silogismos, que expulsou a música das tragédias de Eurípides e destruiu sua essência, que é a manifestação e configuração apolíneas de estados dionisíacos. De nada adiantou aquele lógico despótico haver recebido uma aparição de sonho, como ele conta a seus amigos na prisão, e que lhe dizia: “Sócrates, faz música”. Era a voz admonitória do daimon, do instinto no seu caso. E para aliviar sua consciência, compõe um proêmio a Apolo e põe em versos algumas fábulas de Esopo. A fábula esópica, aliás, era o que ele mais apreciava, justamente por conter aquela velha alegoria moral na estória contada. Mas a arte é o reino da sabedoria do qual a lógica e a moral estão proscritos. O seu sentido, se tiver algum, é metafísico. Assim foi a tragédia entre a arte grega dos tempos mais férteis, essa arte à vista da qual toda produção autônoma, aparentemente original e sinceramente admirável parece perder cor e vida e encolher-se em cópia malograda e até mesmo em caricatura. Sente-se uma fúria íntima contra aquele povinho arrogante que se atrevera a tachar de “bárbaro” tudo o que era alienígena. Mas todo o veneno que a inveja, a calúnia e o rancor geraram dentro de si não bastou para eclipsar de todo essa influência. Todo mundo sente vergonha e medo ante os gregos, a não ser aquele que estime a verdade acima de tudo, não obstante a influência negativa de um homem teórico como Sócrates, alguém que se acha capaz de, pelo simples fio condutor da causalidade, sondar os abismos mais profundos do Ser, de conhecê-lo, prevê-lo, corrigi-lo. É a ciência, o espírito científico, otimista, que quer fazer o cosmos conhecível para justificar, dar um sentido à existência. Mas a existência só adquire um sentido adequado se sua consideração desembocar no mito como consequência inevitável. Depois de Sócrates, como as ondas do mar, uma escola de filosofia segue a outra. É a avidez do saber. Em face desse otimismo teórico que nos rege em tempos atuais, perguntemos onde encontrar aquele pessimismo trágico que se afirma na existência, onde encontrarmos uma arte trágica, dessas feitas para poucos, cujo artista até despreza o grande público, sim, não se acomoda a um poder cuja força reside apenas no número. Quais as esperanças de renascer nos dias de hoje uma arte contra o outro impulso que trabalha contra ela, seguro de sua vitória: a ciência. Essa arte não pode vir de um princípio único, mas dos dois impulsos. Através da letra de um, o outro deve lançar seu espírito e seu grito de júbilo místico, de modo que nos fique assim franqueado o caminho para o cerne mais íntimo das coisas.
3. Miragens de uma possível ressurreição
Schopenhauer reconheceu na música uma origem diversa de todas as outras artes. É a ele que a filosofia estética de cunho metafísico deve o achado. A música não é cópia de cópias de Ideias como as outras manifestações artísticas, mas reflexo de algo totalmente outro. Como Aristóteles dizia que a música imita a alma humana, o que não é de todo correto, de certa forma podemos dizer também que é como se ela representasse todos os processos no interior do ser humano que a razão atira na esfera ampla do conceito de sentimento. Todavia, não há nada com que a rigor as melodias possam ser comparadas. É só aparentemente que um sentimento pode ser expresso através de um número infinito de melodias possíveis. Tais sons no fundo apontam para algo muito mais além do que sentimentos puramente humanos. Sua linguagem é um mistério, ouvimo-la e nossa fantasia fica incitada a enformar aquele mundo de espíritos do qual ela nos fala, e quem, ao ouvir as melodias, encontrar no mundo visível algo que se lhes compare, esse só deve desesperar-se de sua flagrante não propensão artística. Só podemos falar da música em termos aproximativos. Dela nasce o mito que nos alude à vida eterna. “Nós acreditamos na vida eterna!”, assim deve falar o ouvinte sob o efeito da música.
Schopenhauer e sua teoria estética, de tão profundas intuições e intelecções, nos dá uma luz em meio à mata escura no resgate de uma arte que tenha em seu substrato mais profundo a música, pois é ela que nos força a adentrar nosso olhar através dos horrores da existência, mas que o façamos sem cair na tentação de negar a vida pela ascese, como recomendava o pessimismo cadavérico da parte moral de sua filosofia. Que surja algo que nos arranque momentaneamente da engrenagem das figuras mutantes e nos sugira o indomável desejo e prazer de existir, que nos fale dos necessários tormentos e dores na aniquilação das aparências, dada a pletora de incontáveis formas da existência a empurrar-se e comprimir-se na vida, mas sem nos exigir a negação da vida. Assim era a tragédia dos helenos que brotou realmente do espírito da música, do coro. Lá, mesmo a ação foi sempre menos importante do que a música, os heróis sempre falavam mais superficialmente do que atuavam, porquanto a música nunca que se objetiva adequadamente na palavra falada. A articulação das cenas e as imagens perspícuas revelavam uma sabedoria mais profunda do que o próprio poeta podia apreender em palavras e conceitos. O mesmo podemos observar em Shakespeare. Hamlet fala mais superficialmente do que age, de modo que não é a partir das meras palavras, porém da visão e da revisão aprofundadas do conjunto que se deve inferir a doutrina dos mistérios de nossa imortalidade.
É nítida a incongruência entre mito e apalavra, se é só palavra. Aquilo que o poeta do verbo puro não alcança, o músico consegue a todo instante. E como era infinitamente rica aquela música que lutou por sua revelação figurativa e mítica, desde os primórdios do coro primitivo, passando pela lírica até a tragédia. Essa música morreu na tragédia, mas continuou viva nos mistérios. Nas mais maravilhosas metamorfoses, não cessa de atrair para si as naturezas mais altivas. Aqui e ali, ela volta a brilhar como arte para fora de sua profundeza mística, depois de ter sido obrigada a sair dos trilhos pelo impulso dialético, pelo saber e o otimismo da ciência, a sabedoria do homem teórico que tomou o lugar da consideração trágica do mundo. Mas Kant, outro ponto de luz, já demonstrou os limites dessa ciência e sua pretensão de validade universal, hoje ela já não conta mais com força suficiente para impedir o redespertar artístico da tragédia. É claro que sua demolidora filosofia crítica pode ser aqui também chamada a testemunhar contra a ilusão do mito. Mas os homens vivemos de ilusões e nos fortalecemos na medida em que não nos deixamos iludir por concepções que nos degradam, que nos rebaixam à condição de decadentes. Que o mito ressurja dos subterrâneos e a arte encontre nele seu solo ideal.
A música que veio após a morte da tragédia não era mais uma música criadora de mitos. No novo ditirambo ático, ela não mais exprimia o ser interno, mas somente a aparência, e de modo insuficiente, numa intuição mediada por conceitos, música da qual se apartavam as naturezas verdadeiramente musicais. Aristófanes, outro porta archote, acertou quando desprezou o próprio Sócrates e sua tendência assassina da arte trágica, de deletéria influência sobre Eurípides. O grande comediógrafo farejou em todos esses fenômenos os sintomas característicos de uma cultura degenerada. Por meio desse novo ditirambo, a música foi convertida em retrato imitativo da aparência de uma batalha, de uma tempestade no mar, despojada de sua força criadora de mitos. Se a música procura excitar nosso deleite apenas em nos obrigando a buscar analogias entre um e outro acontecimento da vida e determinados sons peculiares, e se nosso espírito deve contentar-se com o conhecimento de tais analogias, então somos rebaixados a um estado de ânimo em que uma concepção do mítico é impossível. O mito quer ser sentido intuitivamente como exemplo único de uma universalidade e veracidade de olhos fitos no infinito eterno adentro. A música dionisíaca nos aponta para algo sob um despedaçar-se aparente que não significa nada ante a inteiriça perenidade desse algo. Já a pintura sonora do novo ditirambo não passa de uma música descritiva, mais afim com o prazer socrático do conhecer, a ilusão de poder curar pelo saber a ferida da existência. Não que a busca pelo conhecimento não seja um dos graus de ilusão desses reservados tão somente às naturezas mais nobremente dotadas, as que sentem, em geral com desprazer mais profundo, o peso do fardo de existir. O problema é que toda nossa cultura está presa nessa rede. As forças cognitivas do homem teórico trabalham exclusivamente a serviço da ciência, cujo protótipo e tronco principal é a figura de Sócrates. Toda outra cultura precisa lutar penosamente para pôr-se à altura, todos os nossos métodos educativos têm originariamente esse ideal em vista, o ideal do homem douto. Mas esse homem moderno desde há muito já sente a decadência a que conduz esse prazer socrático e exige agora uma outra forma de sabedoria.
E ela há de surgir, mesmo em nossa sociedade levada até às camadas mais baixas por semelhante cultura racional, cientificista, cultura que estremece pouco a pouco sob efervescências e desejos exuberantes. Sua proclamação só da boca para fora da crença na felicidade de todos não anulam a permanente e séria ameaça. As classes dominantes dessa cultura sabe que necessita de uma classe de escravos para que continue existindo de forma duradoura, embora negue essa necessidade, sabendo que no fundo caminha de encontro a uma horripilante destruição, porquanto não há nada mais rancoroso do que uma classe bárbara de escravos que aprendeu a considerar sua existência como injusta e dispõe-se agora a vingar-se por si e por todas as gerações. E não vai adiantar apelar para as nossas pálidas religiões, as quais degeneraram em religiões doutas de tal modo que o mito, o pressuposto obrigatório de qualquer religião, acha-se paralisado, pois até na religião conseguiu impor-se aquele espírito otimista que é o germe da destruição da atual sociedade. O homem moderno desde há muito já sente o infortúnio que dorme no seio dessa cultura em que já não há mais lugar para grandes naturezas de disposições universais, os que usam o instrumento da própria ciência a fim de expôr seus limites e os condicionamentos do conhecimento em geral. Essa ilusão de que, pelo fio condutor da causalidade, podemos sondar o ser mais íntimo das coisas ainda se exibe vitoriosa com seu otimismo aberto na essência da lógica. E mesmo assim, não estão perdidas as esperanças de que surja em qualquer lugar do Ocidente uma espécie de artista que empurre para o lugar da ciência a sabedoria que se volta com o olhar fixo para a imagem conjunta do mundo e apreende, com um sentimento de amor, o eterno sofrimento como sofrimento próprio. É o artista com o destemor do olhar, com pendor para o descomunal, com seu passo arrojado de matador de dragões, a orgulhosa temeridade com que dá as costas a todas as doutrinas da fraqueza geradas pelo otimismo, pois esse homem otimista, moderno, agora angustiado, sente que sua cultura edificada sobre o princípio da ciência tem de vir abaixo quando essa cultura logicista começa a tornar-se ilógica. É sabido que é inútil querer imitar os grandes períodos sem o próprio espírito que os animou, de modo que, junto com o renascimento daquela consideração trágica da existência, é preciso que venha também algo com o selo do novo, algo totalmente diferente do douto atual, esse que reúne em torno de si toda a arte universal e coloca-se no meio dela, entre os estilos artísticos e artistas de todos os tempos, coloca-se no meio deles e põe-se a lhes dar nomes, como Adão fez com os animais. Esse homem já tardio continua sendo o eterno famélico, o crítico, um bibliotecário e revisor cego devido a poeira dos livros e aos erros de impressão.
Sim, meus irmãos, apartemo-nos dos efeitos deletérios de uma influência socrática. E se quisermos ver o mal que ela causa em toda e qualquer arte, na grande música, por exemplo, olhemos para a ópera. Essa música exteriorizada, esse gênero semimusical de falar, incapaz de emoção se comparada com a música inelutavelmente mais sublime e mais sagrada. A ópera é resultado do gosto do homem teórico que no fundo é um leigo em se tratando de música. Ele é incapaz de discernir as múltiplas linhas melódicas harmonizando-se na urdidura polifônica e, por não compreender em absoluto a divina e filigranosa arte da contrapontística, batisa essa música excelsa de Barroca, não sem a pejorativa pecha do conceito. Por isso, não nos espanta o fato de o gosto pela ópera haver se espalhado com ímpeto justamente na sociedade luxuriosa e ávida de distração daqueles círculos florentinos quando, na mesma Florença, havia despertado o edifício luminoso das harmonias palestrinianas em que trabalhava em sua construção toda a luz mediterrânea. O ouvinte era demasiado racional. A força do espírito da ópera é tão baixa como é baixa a força de nossas instituições superiores de ensino, principalmente as que formam os jornalistas, gente que nada aprendeu sobre a oposição entre aparência e coisa em si, gente cada vez mais longe de entender o verdadeiro efeito de uma tragédia musical num heleno. À vista do mito movendo-se à sua frente, o heleno se sentia elevado a uma espécie de onisciência e seus olhos eram capazes de penetrar, através dos fenômenos, nas ebulições do Ser, na corrente grossa das paixões com a ajuda da música e mergulhava até os mais delicados mistérios das emoções. É o cimo e a suma da arte, a alegria no aniquilamento. Há o estremecimento diante das ações do herói que o destroem, mas não sem pressentir nessa destruição um júbilo e um prazer superior. O impulso dionisíaco engole todo esse mundo das aparências, e o que se sente é uma suprema alegria artística primordial. Enquanto outros estetas caracterizam como propriamente trágico ora a luta do herói contra o destino ora o medo e a compaixão, que devem ser impelidos por sérias ocorrências até causarem uma descarga aliviadora, isso de nada nos serve para chegarmos ao âmago dessa arte. Entre os antigos, o mais alto grau patético é tudo jogo estético que o alegra e conforta metafisicamente e o eleva acima de qualquer processo moral, pois a arte não está a serviço de outra coisa a não ser dela mesma. Quem não sente assim é o crítico moderno com pretensões meio morais, meio doutas. Como renascer a tragédia grega em meio a ouvintes assim, a críticos assim? O verdadeiro ouvinte é o que fica extasiado por um poderoso feitiço, enquanto o esteta moderno atrela a obra a uma política da atualidade. Quando essa cultura crítica moral chega à arte, ela degenera em um objeto da mais baixa espécie. Isto quando não passa a ser usada como meio gregário de uma sociabilidade vaidosa, dissipada, miseravelmente egoísta e despida de originalidade, de modo que nunca se tagarelou tanto sobre arte e se considerou tão pouco a arte.
É preciso compreender o mito, a imagem concentrada do mundo, não o espírito histórico-crítico da época atual, do agora. Sem o mito, toda cultura perde sua força natural e criadora. As forças da fantasia e do sonho apolíneo só são salvas pelo mito, sim, um horizonte de mitos, hostes de espíritos, os despercebidos e onipresentes guardiães sob cuja custódia cresce a alma jovem e com cujos signos o homem dá a si mesmo uma interpretação de sua vida e de suas lutas. Não há lei mais poderosa que o fundamento mítico, o que garante a conexão com a religião, o seu crescer a partir de representações míticas. Sem o mito, o homem moderno é de costumes abstratos, seu vaguear não é guiado por nenhuma cultura artística, ele não possui nenhuma sede originária fixa e sagrada, suas possibilidades estão esgotadas. Essa necessidade histórica da insatisfeita cultura moderna vive perdida da pátria mítica na febril e sinistra agitação dessa cultura, e talvez só mesmo olhando para os gregos, nossos luminosos guias, poderemos purificar nossos conhecimentos estéticos. Apolo e Dionísio, cada um regendo um reino estético separado, encontramo-los juntos na tragédia da melhor fase dos gregos. O ocaso, a morte desta se deu por uma dissociação notável dos dois impulsos artísticos primordiais, ao mesmo tempo em que se degenerava e se transformava o caráter do povo grego. Até então os gregos ligavam tudo o que lhes acontecia a seus mitos, só compreendiam o que vivenciavam a partir dessa articulação, com o que o presente mais próximo se lhes apresentava sempre sob o aspecto do eterno, e, nesse flume intemporal, mergulharam também a arte e o Estado, pois um povo, como de resto um homem, vale precisamente tanto quanto é capaz de imprimir em suas vivências o selo do Eterno. O contrário disso é quando se começa a conceber-se histórico e a diluir à sua volta os baluartes míticos, e fica-se assim mundano, presente, moderno, atual, até o rompimento com a metafísica.
Portanto, para um possível renascimento dessa tragédia magnânima, ergamos nossas cabeças para o céu puro, pois lá veremos o sobrevoo do pássaro dionisíaco nos mostrando a direção de uma arte tão alada e altaneira quanto seu espírito. É essa arte que nos faz adquirir o dom de olhar e ir além do olhar, que opera o prazer na visão do significado mítico, prazer cuja pátria é idêntica à da sensação da dissonância na música, que, quando empregada artisticamente, nos faz ouvir e ir muito além do ouvir. Aspiremos ao infinito com o plasmador deste universo, que, brincando como uma criança, constrói montes de areia e volta para destruí-los depois. Transportemo-nos, como em nossos sonhos, a esse estado de espírito até surgir-nos uma visão de nós mesmos passeando sob altas colunas jônicas, na Hélade da era áurea, tendo junto a nós, em mármore reluzente, reflexos de nossos próprios corpos transfigurados. Dirigindo agora nosso foco de visão para o ponto em que as nuvens tocam a linha do horizonte, ajoelhemo-nos agradecidos por tão divina profusão de beleza e, por fim, serenamente pensativos, exclamemos emocionados: “Quanto precisou sofrer esse povo para tornar-se tão belo!”.