Os Afro Sambas
Vinícius de Moraes & Baden Powell
We Are Coming Soon
Ano gravaçao: 1966
Produção e direção artística: Roberto Quartin e Wadi Gebara
Técnico de gravação: Ademar Rocha
Arranjos e regência: Maestro Guerra Peixe
Vocais: Vinicius de Moraes, Quarteto em Cy e Coro Misto
Sax tenor: Pedro Luiz de Assis
Sax barítono: Aurino Ferreira
Flauta: Nicolino Cópia
Violão: Baden Powell
Contrabaixo: Jorge Marinho
Bateria: Reisinho
Atabaques: Alfredo Bessa e Nelson Luiz
Bongô: Alexandre S Martins
Pandeiro: Gilson de Freitas
Agogô: Mineirinho
Afoxé: Adyr José Raimundo
Encontro altamente profícuo entre a poesia e o violão
Por Flávio Roberto Nunes
O resultado de um dos mais bem-sucedidos casamentos entre uma arte erudita e outra de raízes mais populares não poderia ter sido mesmo outro. Os Afro-Sambas, de Vinícius e Baden, depois de mais de meio século de seu lançamento, continua representando uma espécie de manancial inesgotável de inspiração para artesões de música do mundo inteiro. Gravado ao longo de apenas três dias, em janeiro de 1966, e em dois únicos canais, as deficiências técnicas de um estúdio precário próximo à zona portuária não ofuscariam o brilho do timbre dos instrumentos, e muito menos o das vozes. Atabaques, afoxés, agogôs, pandeiros, berimbaus, gonzos, saxofones, flautas, contrabaixos e um violão inconfundível dão a base rítmica, harmônica e melódica para o vocal de Vinícius e o auxílio luxuoso (evocações do canto gregoriano, segundo Baden) das meninas do Quarteto em Cy. Canto de Xangô, Bocoché, Canto de Iemanjá são pérolas vivificadas pelo espírito africano do candomblé, pelo sopro do samba de roda e da umbanda urgidos na Bahia e pela alma carioca de um certo samba moderno, com ecos da Bossa Nova, vide Tristeza e Solidão, mas com a espiritualidade que os músicos habitantes da zona Sul do Rio de Janeiro não tinham.
Dois clássicos da música brasileira: o erudito e o popular
Vinícius de Moraes, erudição e carisma a serviço da música popular
Nascido em 1913, no seio de uma família de intelectuais do bairro da Gávea, o futuro “poetinha” se formaria em Direito aos vinte anos de idade, no mesmo ano em que deu à luz seu primeiro livro de poemas, O Caminho para a distância, que o situará como nome significativo da segunda geração de modernistas, mais precisamente do grupo de poetas católicos que se formou na então capital do Brasil, com destaque para Jorge de Lima, que, em 1952, assombraria com seu sublime Invenção de Orfeu. O livreto de Vinícius inaugura sua fase transcendental, timbrada por inquietações religiosas, pelo anseio de alcançar, pelo caminho do misticismo, a sublimação dos sentimentos de culpa e desconsolo que a vida nos impõe. São poemas longos, com versos igualmente compridos, forjados em linguagem hermética, digna de um simbolista acossado por anjos e demônios. É só no ano de 1943, com Cinco elegias, que haverá o levante de uma elaboração mais próxima do mundo material, de interesse por temas do cotidiano. A linguagem tenderá à simplicidade, o verso livre há de ser mais empregado, a comunicação ficando mais terrena. É a fase que coincide com seu ingresso na carreira diplomática (que o levará a viver por muitos anos em Los Angeles, Paris e Montevidéu, tempos em que trocará ideias com grandes artistas da época) e no jornalismo, escrevendo crônicas e crítica de cinema, até entregar-se de vez, na euforia dos anos cinquenta, à atividade de cantor e compositor. É de 1956 a publicação da obra marco dessa guinada, a peça Orfeu da Conceição, levada, no mesmo ano, ao palco do Teatro Municipal, inaugurando a parceria com Tom Jobim. Se a literatura perdeu um vate que ainda tinha muito que contribuir para as letras nacionais é algo que ninguém jamais saberá. O certo é que Vinícius foi um dos poetas mais próximo de nós, um dos mais amados, aquele que, sem nunca haver abandonado a doçura por uma dicção clássica, restituiu ao soneto, defenestrado pelos modernistas da primeira fase, seu lugar na literatura do Brasil; aquele que foi um dos fundadores da Bossa Nova; aquele que teve, além de Baden, vários outros parceiros, entre eles Caymmi, Antônio Maria, Carlos Lyra, Edu Lobo, Chico Buarque e Toquinho; enfim, aquele que levou às ruas, bares, teatros, rádios e TVs, obras que não cessam de enlevar os que por elas se sentem atraídos, devido àquelas inexplicáveis afinidades.
Baden Powell, raízes mais profundas e o virtuosismo de um violão universal
Baden veio ao mundo em 1937 numa cidadezinha do noroeste fluminense de nome insólito, Varre-Sai, à qual, embora tendo-a deixado aos três meses de nascido para ir morar no subúrbio da metrópole, nunca deixou de amar. O pai, seu Lilo de Aquino, um sapateiro violinista, foi o primeiro e grande incentivador. O velho o fez sentir saudades da terra-mãe como se o filho nunca a tivesse abandonado. E seu Lilo era também um entusiasta do escotismo, pois o nome incomum do menino é uma singela homenagem ao general britânico Robert Stephen Smyth Baden-Powell, o fundador do movimento. Foi seu Lilo quem lhe ensinou os primeiros acordes, e, quando o prodígio completou sete anos de idade, o gênio virtuose já era evidente aos olhos do genitor, que o põe para estudar com mestre Jayme Florence. O professor o doutrina no violão clássico e o incentiva a apresentar-se, aos dez anos apenas, no Papel Carbono, famoso programa de calouros da Rádio Nacional. Daí em diante, até a gravação dos Afro-Sambas, o mulato de Varre-Sai tocará com os principais bambas do samba e do choro da época, incluindo Pixinguinha, e já terá gravado seu primeiro disco na Europa, o Le Monde Musical de Baden-Powell.
Vinícius e Baden, uma amizade desinteressada e a produção de frutos que tão cedo não hão de perecer
Estaremos cada vez mais certos de que foi a sinceridade da amizade entre os dois a chave para a produção de uma obra como Os Afro-Sambas. Baden o regravaria em 1990, com Vinícius já estando estudando a geologia dos campos santos. Mas essa é uma outra história. Saravá!