A Noção de Magia
Por: Ricardo P Nunes
Ainda que de maneira tácita, os primeiros antropólogos a debruçaram-se sobre o tema da magia, seja como uma espécie de protorreligião ou um meio indistinto para a realização de aspirações para si ou, em forma de vingança, a outrem, mas sobretudo de curas, sugeriram em suas monografias que a instituição da magia, ou sua intenção no cumprimento de ritos ou no manuseio de elementos a ela associados, amparava-se na ideia ou na perspectiva de uma força dinâmica vital que estaria disposta nos próprios elementos de que era constituído o mundo. Tal como no panteísmo de Espinoza (1983 [1677]), porém evocável, manuseável; como se, tão logo o devotado temor teológico a fenômenos cataclísmicos se mostrasse infundado, ou que a própria regularidade de tais e grandiosos fenômenos os relegassem à ininteligível esfera dos deuses supremos, restasse disponível às vicissitudes da vida cotidiana, ainda que apenas a uma pequena minoria suscetível, todo um cabedal de fórmulas e recursos místicos com os quais seria possível tentar controlar essas supostas forças supranaturais em benefício particular ou coletivo.
Para referirem-se a essa força ou à sua simples “noção” - termo vago mas que adotarei aqui, provisoriamente - embora devamos considerar aqui suas mais diversas nuances e variações, aqueles pesquisadores utilizaram os próprios termos com que os nativos a denominavam, tais como mana entre os melanésios (COGRINGTON, 1891, pp. 57 ss), manitu entre os algonquinos (THAVENET apud MAUSS e HUBERT, 2016 [1902], p. 148), orenda entre os iroqueses (HEWITT, 1903, p. 207). Dentro desse elenco, podemos enumerar também o sentido do termo indígena amazônico bahsese, utilizado pelos coletivos tribais tucano do Alto Rio Negro:
O detentor de bahsese, para não sofrer os ataques dos waimahsã, com seus artefatos e armas (wakari, wahpiri, wehõesé e outros), lança mão de vários tipos de esteiras invisíveis em torno da pessoa que fica sob a proteção do bahsese. Isso evita e previne doenças lançadas pelos waimahsã. [...] o kumu lança palavras de afinidade, respeito e consideração com expressões de apaziguamento: “mari niku porãni, mari na diaku ni mari, ameri ñatuti wetikarã mari” [1] [...] Usa-se essa fórmula para adentrar e usufruir no ato do bahsese dos seres e coisas da terra-floresta (AZEVEDO SUEGɄ, 2016, p. 52).
Bem como a noção de origem de uma “força” de cura, como descrita no relato de Audirene S. Cordeiro em cidade do interior do Amazonas:
[A maioria dos curadores] manifestaram sentir uma força estranha durante as atividades de cura, mas somente os curadores considerados sacacas revelaram ser essa força um bicho do fundo [...] Somente depois de manso, ou seja, depois de superar o estado de ‘ser selvagem’, se libertar das grades corporais que limitam o acesso a territorialidades outras, ir além da lógica eurocêntrica, os curadores pode receber e controlar a força/potência da cura. Daí, porque esses curadores cujo ensinamento da cura se deu na escola do fundo serem chamados de sacaca. Eles recebem o poder/força/potência de curar e fazem questão de ratificar “eu não curo, a força que vem através de mim é que faz o serviço” [...] é desses seres que emana a força não só de curar, mas também de se ingerar, capacidades sem as quais os curadores sacacas perderiam a força (CORDEIRO, 2017, pp. 117-118).
Essa categoria de noções seria definida, de um modo geral, como sendo uma crença em que desde os menos suspeitos aos mais triviais encadeamentos da natureza física e espiritual estariam em alguma medida inter-relacionados[2], como que consubstanciados pelo mesmo influxo de uma energia universal.
O orenda é poder, poder místico. Não há nada na natureza e, mais especialmente, não há ser animado que não tenha seu orenda. Os deuses, os espíritos, os homens, os animais são dotados de orenda. Os fenômenos naturais, como a tempestade, são produzidos pelo orenda dos espíritos desses fenômenos. O caçador feliz é aquele cujo orenda bateu o orenda da caça. O orenda dos animais difíceis de pegar é dito inteligente e astuto. Veem-se em toda parte, entre os Huron, lutas de orendas, assim como vemos, na Melanésia, lutas de manas. O orenda é [...] o espírito fazedor de tempestades, [que] lança seu orenda representado pelas nuvens. O orenda é o som que as coisas emitem; os animais que gritam, as aves que cantam, as árvores que murmuram, o vento que sopra, exprimem seu orenda (HUBERT e MAUSS, op. cit. p.147).
Mais recentemente, Geertz (1989, p. 72) endossou essa categoria de noções ao propor que o mana é “uma concepção totalmente impregnada de vitalidade”; mais adiante, atribui certa anterioridade a esse instituto, um caráter primordial, quando dá a entender que o mana constitui um dos fundamentos religiosos e que só através dele é que foi possível organizar a “desordem natural em que nos achávamos” e que “a crença religiosa não envolve uma indução baconiana da experiência cotidiana [...], mas, ao contrário, uma aceitação prévia da autoridade que transforma essa experiência” (Idem, p. 80, grifo acrescentado).
Sob uma análise menos intuitiva e mais lógica, ou seja, sob a perspectiva de que “nihil est intellectu quod prius non fuerit in sensu[3]”, ou do princípio empirista da tabula rasa de John Locke (1983 [1689]), tal instituição, amplamente compartilhada por quaisquer daqueles povos e apontada pelos primeiros etnógrafos do tema como fonte da noção de magia, embora de sentido ou apreensão relativamente variável e dispersa ─ como sói suceder a conceitos, mitos e elementos no âmbito das afecções religiosas ainda não sistematizadas por uma controvérsia exegética ou consolidadas numa dogmática ─, não seria senão fruto da experiência dedutiva sensorial; isto é, das conclusões ainda que errôneas ou precipitadas sobre as relações de causa e efeito entre os fenômenos experimentados ou observados. Se, de uma despretensiosa vivência do mundo onde uma categoria de fenômenos não se enquadra nas inferências proporcionadas pela analogia entre sequências de fenômenos ordinários, é natural que se entreveja naqueles atos o domínio de uma outra esfera de acontecimentos não abrigados na natureza material. Logo, haveria uma fórmula dada de uma outra realidade subjacente, misteriosamente estruturada por uma potência superior como num novelo de partes interdependentes o qual seria, embora não inteligível, ao menos passível de uma mímese — que a princípio não se articularia de modo pensado. Se haveria alguma lógica simpática[4] no mundo, seria possível então tentar reproduzir seus resultados. Os ritos de passagem, os feitos e circunstâncias que sagram o mago, o bruxo, o pajé, o xamã e (por que não?) o pastor neopentecostal, ou ainda os efeitos e estímulos hiperestésicos da própria ritualística, reportam-nos à tentativa de adentrar nessa dimensão mágica ou espiritual do mundo que abrigaria a noção de mana, cujo sucesso dependeria somente da própria capacidade do oficiante, cuja fé nessa “força” o faz enxergá-la ou senti-la não como apartada de si, mas como o próprio meio por onde penetrá-la.
Dessa forma, uma reflexão sobre essa etnografia acerca da ideia de mana remete-nos, por outro lado, a algo talvez aquém de uma metafísica, ou como algo dado em um momento posterior e mais ordinário, como na suspeita de que a magia seria, ainda que de forma sub-reptícia ou “espúria” (FRAZER, 1982 [1890], p. 85), uma rudimentar ancestral do procedimento científico (MAUSS e HUBERT, op. cit. p. 50; BOURDIEU, 2007, pp. 34 ss); nos termos de Lévi-Strauss (2017 [1962], p. 21), uma espécie de bricolage. Assim, essa noção de magia pura e simples, não maniqueísta, ou seja, já despojada, independente ou anterior ao surgimento de entidades antropomórficas malévolas ou angelicais, que fundamenta e faz evocar essa atmosfera miraculosa por assim dizer “neutra”, parte antes de uma perspectiva com certo grau de dessacralidade, na medida em que o advento do bruxo, do alquimista ou do sacerdote demonstra que se acredita poder manejar, ainda que de maneira fugaz, os elementos comuns àqueles dois mundos. O orbe contingente e irrevogável em seus desdobramentos dialético-temporais, poderia então ser influenciado pelo outro, tal um continuum. Essa interface mágica seria anatemizada, porém, pela supremacia adquirida pela ortodoxia cristã sobretudo a partir do séc. IV em diante, a qual teria rebaixado à idolatria o antigo culto greco-romano e à mais vil condição de demônios infernais as entidades do seu panteão (GIBBON, 2003 [1776], pp. 194-239).
O que Max Weber denominou de desencantamento do mundo, ocorrido, segundo ele, de forma mais destacada na passagem da Idade Antiga para a Moderna, teria sido, de fato, desencadeado por uma desistência, um resignado cansaço, ou mesmo por uma inadequação sócio-política ou econômica do indivíduo em ver-se eternamente condicionado por uma entidade divina máxima cuja promessa de intervenção redentora está reservada somente para o final dos tempos, para o além-túmulo de um mundo injusto e incompreensível. Ou seja, diz respeito justamente à incompatibilidade de um mundo onde suas formas mais imanentes de divindade haviam sido banidas no longo processo de universalização do cristianismo. Mas o que fica patente em seguida, porém, é que, com o tempo, embora com a queda do Império Romano e da religião antiga e o posterior domínio do cânone católico no mundo norocidental, essa visão de mundo desencantada, dessacralizada, referir-se-ia apenas a seu âmbito macrocósmico, porque o que passa ou continua a acontecer nas práticas religiosas uma percepção do plano terreno onde os próprios elementos naturais[5] e os fatos da experiência cotidiana que constituem sua realidade mais imediata assumem uma autonomia própria, nas qual logo haverão de reclamar uma interpretação que os relacione mutuamente e os perceba como potencialmente dotados de sacralidade [6]. Ou seja, no fundo, o encantamento não teria sido totalmente extinto, mas apenas ressignificado agora num campo intracósmico, e sobretudo quando despontasse a necessidade de reorientação cosmológica e a de se preencher o vazio resultante da frustração do acalentado progresso científico em dar conta de explicar e oferecer soluções para os velhos dramas humanos mais íntimos, existenciais.
Mana, bahsese .... khárisma e as curas urbanas
Para tentarmos sugerir, de forma analítica, conceptual, que as noções de “energia espiritual” difusa que se constata em formas mais elementares ou diretas de práticas mágicas possuem um substrato similar e desempenham, ainda que de forma meramente análoga, um papel preponderante também no ritual de cura neopentecostal, por exemplo em conceitos como o de khárisma[7] ou dogmas como o do spiritus sanctus, seria necessário compor um longo périplo de volta às fontes históricas acerca das gnosticismo cristão primitivo, suas fontes nas antigas seitas judaicas a partir da época do Segundo Templo e até mesmo à influência exercida pelos cultos religiosos do Oriente Próximo helênico[8], o que extrapolaria os objetivos e as dimensões deste trabalho. O que podemos sustentar aqui é apenas que, embora demasiado elusiva, heterogênea e panteísta para o dogmatismo do cristianismo ortodoxo, essa noção de “energia espiritual” difusa poderia ser analisada como um paralelo equivalente dentro do contexto das religiões neopentecostais atuais; que ela comparte um conteúdo semântico com essa nova corrente de curas dos cultos evangélicos urbanos, embora aqui essa “noção” não deixe de estar associada à configuração de uma divindade suprema própria das grandes religiões institucionalizadas ao longo dos séculos, as quais precisam objetivá-la em arcabouços lógicos como uma teodiceia, de uma soteriologia ou de sumas teológico-filosóficas[9].
Quanto à natureza unilateral ou ambivalente dessa “noção”, segundo a temos tentado explorar até aqui, obviamente estranha ao maniqueísmo do culto neopentecostal, poderíamos argumentar que a necessidade de objetivação, provavelmente estaria aliada à estrutura de polarização de categorias pertinente à própria racionalidade. Assim, a consolidação desse processo de oposição num campo religioso milenar como o do Cristianismo, entre figuras e representações demonológicas ou teúrgicas, possivelmente teria resultado no fato de essa "noção” aparecer cindida em categorias antípodas e irreconciliáveis como Bem e Mal. Não é novidade o que retomam os rituais de cura modernos praticados hoje por diversas denominações evangélicas, no chamado xamanismo urbano e em sofisticadas técnicas de cura energética como a “ressonância harmônica”, terapia reikiana”, etc. O que há de visceral no neopentecostalismo é sua persistência cosmológica unívoca, o que faz com que a conduta dos seus devotos, sobretudo no que diz respeito à fé e aos sacrifícios práticos, imediatos e ostensivos, é responsável por atrair ou rechaçar as forças espirituais sempre sob a égide de seus sacerdotes. Essa matriz cosmológica por si mesma impõe um alicerce numa hierarquia eclesiástica baseada num ente supremo, mas agora como provedor do carisma — ou do mana —, o qual reduz agora todos os seus oponentes às vicissitudes de forças malignas meramente contingentes e submundanas, meros óbices na trajetória do crente em direção ao sucesso pessoal neste mundo.
Notas
[1] “Somos filhos do mesmo ancestral, somos uma só pessoa, não tenhamos hostilidade uns com os outros”.
[2] Tal um mundo ideal platônico, mas indissociável deste, ou seja, o além pode ser projetado, porém, não deixaria de estar consubstanciado neste mundo. Como sugeriram Viveiros de Castro (2002) e Philippe Descola (2016), o universo cultural daqueles povos seria sentido e vivenciado através de uma percepção monista porque simultânea entre natureza, cultura e supranatural; contrariamente à típica percepção bipartida da sociedade industrial, onde haveria espaço para apenas duas dimensões distintas: a natureza e a cultura, porém, não estamos totalmente de acordo com essa teoria conforme explicado no capítulo Ritual para a Comunidade.
[3] Máxima empirista: “nada está no intelecto que não tenha passado antes pelos sentidos”.
[4] No significado que James Frazer (1982 [1912]) atribrui ao termo.
[5] Similar atitude ocorre nas evocações telúricas do chamado xamanismo urbano (MAGNANI, 2005).
[6] Desde a baixa Idade Média vemos ganhar destaque no campo teológico-filosófico personagens como Paracelso, Pico de la Mirandola, Giordano Bruno e Roger Bacon (YATES, 1995; GILSON, 2007; VOEGELIN, 2012), assim como, mais adiante, tomarem a dianteira figuras ligadas à fundação das ciências modernas como Francis Bacon, Descartes, Mersenne e Isaac Newton (idem), cujos trabalhos científicos ainda correm paralelos a um forte sentimento religioso cristão ao mesmo tempo que a experimentos místico-alquímicos (FANNING, 2017).
[7] Mesmo que carisma - Do Grego, khárisma, atos: graça; favor. No Latim, charīsma, ătis: graça divina, dom extraordinário e divino concedido a um crente ou grupo de crentes.
[8] Cf. Helenismo, Roma e Cristianismo Primitivo, v. I. Eric Voegelin, É Realizações, 2012
[9] A Escolástica, principalmente a de Tomaz de Aquino (GILSON, 2007, pp. 652-682)
Bibliografia
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