A Rosa Púrpura do Cairo
A Rosa do Sonho e o Sonho da Rosa
Por Ricardo P Nunes
Ao contrário do nostálgico jargão popular do “éramos felizes e não sabíamos”, a tímida e sofrida Cecília (Mia Farrow) é uma mulher infeliz sem saber. Através da película romântica do cinema — perdoem mais esse trocadilho —, é que ela projeta a própria vida, como uma esperança que se compraz na fictícia felicidade alheia. Mas por falar em trocadilho, essa espécie de paráfrase, o termo bem que se presta para nos referirmos às múltiplas costuras entre ilusão e realidade que cerzem o roteiro de A Rosa Púrpura do Cairo (EUA, 1985).
A exemplo do mundo ordinário (sobretudo em crises como a da Grande Depressão, pano de fundo do filme), em que os sonhos se tornam ainda mais eloquentes, em busca dessa verossimilhança tornou-se lugar comum na ficção que ela procure mesclar-se com a realidade. Woody Allen (criador, roteirista e diretor do longa), porém, lança mão desse óbvio e necessitado viés não de forma gratuita, mas para elevá-lo ao quadrado. Se, enquanto expectadores, pelo menos enquanto durem, estamos dispostos a crer nas histórias que os filmes contam, aos poucos as veleidades cinematográficas de Cecília vão refletindo nosso alter ego. E essa barreira vai-se tornando cada vez mais inconsistente à medida em que a realidade de dentro de A Rosa Púrpura, ou seja, a da própria Cecília, também passa a se imiscuir no filme a que ela assiste pela enésima vez.