Dom Quixote, por John Rutherford
“Então tenho de dizer — disse dom Quixote — que o autor de minha história não foi um sábio, mas algum camponês ignorante, que às cegas e sem nenhum critério se pôs a escrevê-la, saia o que sair, como fazia Orbaneja, o pintor de Úbeda, que respondeu quando lhe perguntaram o que pintava: “O que sair”.
Dom Quixote, II, III
No prólogo à primeira parte de Dom Quixote, Cervantes conta que a ideia do livro lhe ocorreu na prisão. É provável que se refira a sua reclusão em Sevilha (1597-1598) por imperícia na função de coletor de impostos. Não se sabe se começou a escrever ainda no cárcere ou depois. Mas está claro que a obra que tinha em mente era muito diferente da que acabou produzindo. Ele pensava numa ficção breve parecida com as Novelas Exemplares, publicadas em 1613. Indicam-no o ritmo acelerado e a curta duração da primeira incursão do cavaleiro, que a empreende sozinho e não vai além dos primeiros cinco capítulos, assim como o fato de, na sétima frase do texto, o narrador se referir à obra como cuento, um conto, coisa que volta a fazer só mais uma vez. Quando a ficção deslancha plenamente, Cervantes passa a chamar o texto de “libro” e “história”, reservando cuento para os contos nele contidos. Ao chegar ao fim da primeira incursão, começa a perceber que precisa explorar mais o mundo ficcional fascinante em que tropeçou. De modo que, aquela que talvez tenha se iniciado como uma fábula mais ou menos moral, recorrendo à paródia para atacar os livros de cavalaria devido ao efeito pernicioso que tinham sobre os leitores, se transformou, à medida que ia sendo escrita, no primeiro romance moderno. Recorrendo à anedota de Orbaneja, Cervantes, com característica auto-ironia, conta como criou sua grande obra. No entanto, o conteúdo moral mesmo da primeira concepção de Dom Quixote é duvidoso. O herói se mostra tão obcecado pelas baladas espanholas tradicionais e seus protagonistas quanto pelos livros de cavalaria: histórias de cavaleiros enamorados, todos de armadura reluzente, a percorrerem países exóticos, matando gigantes e o dragão ocasional e salvando donzelas em perigo a fim de provar sua grande habilidade de guerreiros e sua perfeição de amantes, apesar das terríveis maquinações dos magos. Os livros de cavalaria gozaram de grande popularidade e foram criticados pelos moralistas por desviar da religião o pensamento dos leitores, principalmente das jovens leitoras, voltando-os para as coisas mundanas. Mas tudo isso tinha acontecido nos primeiros setenta anos do século XVI. Daí em diante, os livros de cavalaria foram superados pelo florescimento da literatura que ficou conhecido como a Idade de Ouro espanhola, e, no tempo de Cervantes, ninguém mais os considerava uma ameaça. A nova ameaça moral literária era o teatro. Mas, numa época em que, conforme o figurino clássico, a literatura ficcional devia não só agradar como instruir e na qual as autoridades podiam censurar ou proibir livros, nada era mais sensato que atribuir um propósito moral ortodoxo ao que se escrevia, particularmente quando a ironia irreverente do texto sugeria ideias críticas com relação a certos aspectos da prática católica, como o julgamento e a queima de hereges, o uso do rosário e a repetição dos credos e ave-marias. Mas tudo indica que Cervantes se interessava mais pelo prazer que pela instrução. O que o entusiasmava era a alegria da narração, a graça da paródia, o humor como algo bom em si em virtude de seu valor terapêutico. A alegação de um propósito moral inconvincente e anacrônico talvez faça parte da graça: uma paródia a mais. E a piada provoca riso até hoje, porque a obra que afirma destruir os livros de cavalaria é justamente o que manteve viva sua lembrança. Ler este romance adorável é acompanhar o autor numa aventura excitante à medida que ele improvisa a história e a vê crescer entre suas mãos. Naturalmente, seria um erro esperar que o livro fosse rigorosamente estruturado. Apesar do grande esforço dos críticos acadêmicos, Dom Quixote é uma obra episódica, tanto quanto os livros de cavalaria, que consistem numa sucessão de encontros fortuitos. O primeiro desenvolvimento depois da breve incursão inicial é prover dom Quixote de um escudeiro, Sancho Pança, que abre caminho para as conversas que se alternam com a ação. A possibilidade de recrutar um escudeiro foi sugerida, mas não posta em prática, durante a primeira incursão. As longas conversas entre cavaleiro e escudeiro não são uma característica dos livros de cavalaria, mas sua contribuição para Dom Quixote é vital, permitindo que este romance de aventuras cômicas também seja uma comédia de caráter. Primeiro, dom Quixote e Sancho aparecem como figuras bidimensionais da diversão burlesca, ambas derivadas da literatura espanhola recente. Dom Quixote é um velho maluco que se julga um cavaleiro andante e sofre risíveis desastres provocados por ele mesmo; e Sancho, o bufão rústico, egoísta e materialista, um personagem típico das comédias espanholas do século XVI. Os dois são absurdamente inadequados a seus papéis: nos livros de cavalaria, os cavaleiros e os escudeiros eram jovens de berço nobre, sendo que os últimos estavam fazendo o aprendizado para depois também virem a ser cavaleiros. Mas estes dois palhaços logo passam a se desenvolver, tal como se desenvolve a relação entre eles. Cada qual começa a mostrar características contraditórias: dom Quixote tem direito a intervalos lúcidos, derivados das teorias médicas contemporâneas acerca da natureza da loucura, e Sancho obtém a astúcia e certa sagacidade da figura do camponês dos contos populares. Os dois ganham profundidade e complexidade — um louco lúcido e um bobo sábio — e o humor se torna mais sutil, embora nunca se afaste do burlesco. Acima de tudo, tanto dom Quixote quanto Sancho adquirem a capacidade de nos pasmar, se bem que sempre de modo convincente. Aqui são relevantes dois princípios da teoria literária da Idade de Ouro: a crença em que admiratio (admiração) e verossimilhança são qualidades essenciais à literatura ficcional subjaz à maravilhosa combinação de imprevisibilidade e credibilidade de nossos dois heróis. Dom Quixote é uma obra experimental muito adiante de seu tempo, no entanto está profundamente enraizada em seu tempo. A determinação do protagonista de transformar a vida numa obra de arte, que chegará ao clímax em sua penitência na Sierra Morena, é a consequência da aplicação insana de outro princípio literário do Renascimento, o da imitatio, a importância da imitação dos modelos literários. A julgar pelo que Cervantes diz no fim do prólogo, ele se orgulhava muito de haver criado Sancho Pança. E, logo que este aparece, Cervantes relata o incidente que viria a ser o mais famoso do livro, a aventura dos moinhos de vento. Os leitores se perguntam por que ele é narrado tão sucintamente, mas o motivo é bem claro: a história mal estava começando a se expandir, ainda não evoluíra de conto para história. É possível que os leitores também indaguem por que se tornou o episódio mais famoso: simplesmente por ser a primeira aventura que cavaleiro e escudeiro vivem juntos? A segunda etapa desse desenvolvimento espontâneo para um romance é a invenção dos narradores. Durante toda a primeira incursão, a história é contada por um narrador anônimo ao qual não se dá a menor importância. Uma vez mais, vemos indícios do que está por vir quando somos informados das opiniões divergentes sobre questões factuais entre os diversos autores que escreveram a respeito de Dom Quixote, e à medida que ele próprio prenuncia como o sábio que fará a crônica de suas aventuras há de descrever essa primeira. Dom Quixote acaba de sair de casa novamente quando Cervantes começa a pensar num modo de explorar essa ideia de diversos narradores para que o chiste continue: num ponto altamente inconveniente, afirma que é ali que o material da fonte, e portanto a própria história, chega subitamente ao fim. O enigmático segundo autor, agora apresentado como o mentiroso historiador mouro Cide Hamete Benengeli, e seu nada confiável tradutor mourisco, juntos, conseguem resolver o problema, fazer com que a história prossiga e criar oportunidades de jogar jogos literários no transcorrer do romance. Tudo isso é mais uma paródia dos livros de cavalaria, geralmente apresentados como traduções espanholas de documentos antigos. É justamente nesse ponto, o início do capítulo IX, que Dom Quixote é chamado de cuento pela última vez. A história escapa tortuosamente das mãos de Miguel de Cervantes Saavedra para cair nas de Cide Hamete Benegeli. Cervantes também marca essa transição avisando que a segunda parte começa ali e referindo-se ao “muito que em minha opinião faltava de história tão deliciosa [...] pareceu-me coisa impossível e fora de todo bom costume que houvesse faltado a esse excelente cavaleiro algum mago que se encarregasse de escrever suas façanhas nunca vistas”, prossegue Cervantes ao perceber o potencial desse cuento e ao incluir na própria história o ato de percebê-lo. A partir daí, já não se pode conferir a evolução de Dom Quixote de conto para romance. De modo que agora Sancho e o bando de narradores são incorporados, e Cervantes continua escrevendo, depressa, sem parar para examinar as incoerências internas. Depois de vários outros capítulos, ocorre-lhe que a jocosidade aumentaria se a linguagem de Sancho se caracterizasse por um acúmulo de provérbios, e, a partir de então, é assim que passa a ser a famosa fala do escudeiro. É possível que a ideia tenha saído da comédia ou tragicomédia de Calisto y Melibea (1499 e 1502), de manipular seu senhor, algo que já começou a fazer na primeira parte: as relações entre superiores e inferiores mostram-se mais complexas do que talvez pareçam. E agora Cervantes concebe um meio para que Sancho venha a ser, espantosa mas credivelmente, governador da ilha que lhe é prometida logo em sua primeira aparição; e o escudeiro torna a nos impressionar com a rara combinação de sabedoria e burrice que mostra tanto no governo quanto ao se afastar dele. No outono de 1614, quando o fatigado Cervantes está escrevendo o capítulo IIX, já perto do fim da segunda parte, eis que estoura uma bomba: a publicação, em Tarragona, do segundo volume do engenhoso cavaleiro Dom Quixote da Mancha, de Alonso Fernández de Avellaneda, pseudônimo de um escritor não identificado que, tendo aceitado o convite fajuto do fim da primeira parte, produzira uma imitação inferior, que narrava a viagem a Zaragoza e os fatos lá ocorridos. Cervantes expressa sua irritação no prólogo da segunda parte (naturalmente, a última seção que escreveu). Mas é artista demais para deixar que a raiva o cegue para as possibilidades cômicas abertas pelo surgimento inesperado de outro dom Quixote e outro Sancho Pança; e trata de incluí-los em sua história. E dom Quixote, ainda a caminho de Zaragoza, muda de planos de uma hora para outra e decide ir a Barcelona: para demonstrar a espuriedade do relato de Avellaneda. Tudo isso impele Cervantes a conduzi-lo ao fim de sua história, o qual já vinha se anunciando no crescimento de dúvidas e desilusões na mente dos dois personagens. Cervantes tem o cuidado de concluir a segunda parte com um desfecho definitivo e categórico. Aliás, não lhe restavam muitos meses de vida. Nesta reconstrução da escrita de Dom Quixote, frisei seu caráter de livro engraçado porque tudo indica que era essa a intenção do autor. É possível que o leitor moderno tenha dificuldade para apreciar parte dessa graça, já que ela nos parece tão cruel. Para enfrentar esse problema, é útil recordar que, até uma época comparativamente recente, o riso era a reação autodefensiva contra a descoberta de flagrantes desvios da beleza e da harmonia da natureza divina. O riso nos distancia daquilo que é feio e, portanto, potencialmente angustiante, permitindo-nos, de fato, dele extrair prazer e benefício terapêutico paradoxais. Nos últimos dois séculos, o espaço de experiências angustiantes com as quais se podia lidar com o auxílio do riso encolheu, e, hoje em dia, está em voga preferir o eufemismo desprovido de humor e politicamente correto, coisa que pode ser menos eficaz ainda; mas, no tempo de Cervantes, a loucura e a violência figuravam entre as muitas manifestações da feiura que se podiam enfrentar com o riso. E, no entanto, é comum as obras de literatura ficcional desenvolverem, tanto na escrita quanto depois, qualidades diferentes das pretendidas pelo autor, e em Dom Quixote são muitas as que nos levam a pensar seriamente. Rimos das palhaçadas de dom Quixote e Sancho; mas, quando descobrimos que o fazemos em companhia do tolo duque e da tola duquesa, pode ser que não nos sintamos tão à vontade com nosso riso; nesse caso, o romance passa a ser não só um livro engraçado sobre malucos como uma exploração da ética da graça e da incerta linha divisória entre loucura e lucidez. É claro que, para tomar outro exemplo, Cervantes fez da própria ficção um tema central de sua obra de ficção por causa das possibilidades cômicas que isso lhe oferecia. Mas nada impede os leitores de avançar para uma consideração de sérias implicações sobre as relações entre fato e ficção e sobre os paralelos entre a reação de dom Quixote aos livros de cavalaria e as reações atuais às telenovelas ou à violência televisada. Tudo isso pode até levar à percepção de que a ficção afetada ou autorreferente não é uma descoberta do século XX, como parecem acreditar certos críticos e teóricos contemporâneos em seu provincianismo pós-modernista. Com sua graça e toda a seriedade e todas as surpresas, Dom Quixote oferece aos leitores uma gloriosa viagem de descoberta na excelente companhia de Sancho Pança, Dom Quixote de la Mancha e Miguel de Cervantes Saavedra. ¡Buen viaje a todos!