Por Ricardo P Nunes
O objeto de estudo das ciências, como se sabe, limita-se ao que é demonstrável, verificável, repetível. A tal ponto seguiu-se esses preceitos que Karl Popper articulou-os numa filosofia segundo a qual aquilo que não é falseável, pode até ser verdadeiro, mas pertence a um domínio do conhecimento não científico. Ou seja, para delimitar seu universo de estudo e o alcance de suas ferramentas de atuação, a ciência teve de estabelecer também a validade de suas regras dentro de um único reino do conhecimento possível. Obviamente que o que sabemos de “ciência” certa e como tal poder ser propagado não é capaz de ir muito além dos seus meros fenômenos. Estes sempre pressupõem outro anterior, que por sua vez, outro, e cada causa uma causa pregressa, o que já é o bastante para a capacidade do nosso modesto entendimento. Assim, o que importa mesmo, ao que temos de nos resignar, portanto, não é bem chegar ao fundo do que algo é ou deixa de ser em absoluto, mas apenas escavar algumas de suas camadas superficiais onde possamos encontrar meios, ainda que parciais ou provisórios, de explicar, prever ou administrar suas manifestações na vida prática, ou até mesmo meramente contemplativa.
Até aqui, tudo bem. Mas acontece que, com o passar do tempo, toda uma série de conhecimentos adquiridos através de outras formas de apreensão restou não apenas abandonada, mas rebaixada a uma condição inferior. Com a euforia do primado da ciência, o que em princípio deveria se restringir metodologicamente ao campo das disciplinas exatas ou biológicas, espraiou-se precocemente, com júbilo triunfante, para os domínios das humanas e sociais, que desde então, aliás, passaram a receber também, dos seus próprios entusiastas, o faustoso status de ciência. Nesse âmbito, o dano seria maior: como apenas os fenômenos importavam agora, sua extensão e complexidade podiam ser redutíveis a fragmentos, fatos avulsos, desconexos, microcósmicos, e sem princípios subjacentes. Então, toda uma avalanche de disciplinas e especialidades surgiriam desde a rasa profundidade onde seus fundadores contentaram-se em definir arbitrariamente o ponto de partida fenomênico do seu campo de estudos. É curioso que justamente um dos mais célebres desses proponentes, August Comte, tenha-lhes previsto os descaminhos. Escrevia ele, premonitório, há quase duzentos anos:
O espírito irracional de especialização que tem crescido em nosso tempo trará como resultado final a redução da história a um vão acúmulo de monografias sem relação entre si, onde toda ideia de uma conexão real e simultânea entre os diversos eventos humanos inevitavelmente se perderá em meio ao estéril estorvo de descrições confusas.
Assim como um ponto está perdido sem um referencial, os fatos históricos carecem de essência e significado sem suas circunstâncias. O veredito da satisfação com a parcialidade dos fenômenos doravante esqueceria esse princípio. Deparamo-nos com uma das consequências desse lais restrito, segmentado, da abordagem dos acontecimentos, por exemplo, nas abordagens das duas correntes arquirrivais que disputam entre si a primazia da verdade no domínio econômico. Ou melhor, nos princípios ideológicos em que se amparam os asseclas da economia política socialista e, por outro lado, nos fundamentos do pragmatismo cego em que se orientam os discípulos da chamada Escola Austríaca de Economia. O materialismo histórico pressupôs uma “pré-história” do mundo que não passa de um reflexo do presente, e onde só há um único e exclusivo fenômeno: a exploração do trabalho. Na gênesis histórica urdida por seus adversários o pressuposto básico é a atividade econômica, o mercado, cujo primeiro motor é a vontade, a motivação ou o desejo humanos. Logo, em ambas as doutrinas as ações dos indivíduos constituem fatos em si mesmos, metafenômenos inaugurais, e nem a mais solitária delas escapa a sua rotulagem.
Ora, nem a exploração nem a realização de um desejo ou vontade constituem coisas intrínsecas. São, antes de tudo, expressões de fatos ou ideias, desdobramentos dentro de um contexto. Como enxerga apenas a aparência do fenômeno tal qual se lhe parece ou convém, o materialismo histórico dialético propugna uma sociedade ou, antes, uma civilização, fundada sobre o valor inerente das coisas, o que gera toda uma cadeia de equívocos na interpretação do fenômeno econômico. Ao passo que a Escola Austríaca, ao abster-se de qualquer tipo de escrúpulo preconcebido, sonda o mundo apenas naquilo que sejam manifestações práticas do mercado, ou seja, os sintomas do fenômeno, as regras do jogo; o que lhe confere certa eficácia na projeção descritiva dos índices e ciclos econômicos, mas lhe nega qualquer possibilidade de explicar o sentido qualitativo nas escolhas e ações dos seus agentes de modo a lançar alguma luz sobre a essência ou os caminhos de nossa civilização.
Na medida em que o que importa são apenas os fenômenos, essas duas teorias passam a carecer elas mesmas de um ethos científico, no sentido de aquilo que pudesse esclarecer o porquê das coisas e não apenas suas implicações. Talvez por isso permanecem como que incompletas e insatisfatórias. No fundo, embora as duas possuam origem relativamente recente, não estão senão sob a mesma égide de dois conceitos muito antigos e opostos: o da presença do mal no mundo e o do livre-arbítrio. Ou, como queria Karl Mannheim, ideologia e utopia. A primeira rege a perversa exploração unilateral entre os homens; o segundo, a “mão invisível”, e cega, do mercado.
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